O aguardado julgamento dos ex-sargentos da Polícia Militar do Rio de Janeiro, Ronnie Lessa e Élcio de Queiroz, acusados de envolvimento no assassinato da vereadora Marielle Franco e seu motorista Anderson Gomes, começou nesta quarta-feira, 30, no 4º Tribunal do Júri da Justiça do Rio de Janeiro. Mais de seis anos após o atentado, a expectativa é de que o julgamento, que conta com a presença virtual dos réus, leve mais de um dia para ser concluído.
Ronnie Lessa, apontado como o autor dos disparos, e Élcio Queiroz, acusado de dirigir o carro usado no crime, foram presos em 2019 e desde então estão sob custódia, com Lessa detido no Complexo Penitenciário de Tremembé, em São Paulo, e Queiroz em Brasília.
Os acusados confirmaram sua participação no crime através de um acordo de delação premiada e agora enfrentam um pedido de pena máxima, que pode chegar a 84 anos de prisão. O julgamento visa, além de estabelecer justiça, promover um “julgamento pedagógico” que explique ao público o avanço das investigações e o papel de cada envolvido.
Depoimentos das testemunhas
O primeiro depoimento foi de Fernanda Chaves, a única sobrevivente do ataque. Na época assessora de Marielle, Fernanda solicitou, antes de iniciar sua fala, que os réus não participassem da sessão virtual, um pedido atendido pela juíza responsável.
Em sua narrativa, Fernanda descreveu a noite de 14 de março de 2018, quando o carro da parlamentar foi alvejado.
“O carro estava em baixa velocidade quando ouvimos uma rajada de tiros. Lembro de me encolher enquanto o Anderson [motorista] sentiu uma dor intensa e disse um ‘ai’. Marielle estava imóvel ao meu lado, e eu sentia o corpo dela sobre mim”, relembrou Fernanda.
A testemunha contou que, ao abrir a porta do carro e sair ensanguentada, gritou por ajuda, acreditando que havia sido um tiroteio. “Não queria acreditar que Marielle estava morta. Saí do carro e comecei a gritar por socorro”, disse ela.
Em seguida, ela foi questionada sobre as consequências do atentado em sua vida. Segundo Fernanda, sua vida foi completamente transformada. “Eu tive que sair do país. Fui orientada a sair imediatamente da minha casa. Eu saí de casa 2 dias e meio depois com meu marido e a minha filha, após aguardar o trâmite da Anistia Internacional, que ofereceu um acolhimento”, relatou.
Apesar da segurança no exílio, o trauma persiste: “Minha vida mudou completamente. Nunca mais houve normalidade desde então”, afirmou. Fernanda explica que sofreu não poder estar perto da despedida de Marielle.
“Tínhamos quase 15 anos de amizade. Eu não pude ir ao velório, ao enterro, à missa de sétimo dia. As pessoas acham glamuroso estar fora do país, mas eu queria estar lá”, disse.
A mãe de Marielle, Marinete da Silva, foi a segunda a prestar depoimento. Em sua fala, descreveu a dor de perder uma filha em circunstâncias tão brutais e revelou como a perda abalou sua vida.
“Não criei ódio no meu coração. Tem tristeza e revolta. Mas, na minha formação católica, quem sou eu para questionar? Deus não queria isso. Mas o livre arbítrio daqueles homens, daqueles covardes, foi o que eles fizeram”, disse ela.
Ela relembrou a infância de Marielle no Complexo da Maré e a dedicação à família desde jovem. “Marielle começou a trabalhar aos 11 anos para ajudar em casa” recordou. Apesar de ser inicialmente contra a candidatura da filha à vereança, Marinete reconheceu o impacto positivo que Marielle teve, mesmo em pouco mais de um ano de mandato. “Ela estava vivendo seu melhor momento profissional”, comentou, enfatizando a persistência e coragem da filha em enfrentar desafios.
Durante o depoimento de Marinete, a promotoria exibiu uma mensagem de texto enviada pela mãe à filha dias após o crime: “Minha filha! O que fizeram com você?” A promotoria também apresentou áudios trocados entre Marielle e Marinete, revelando o carinho e a proximidade entre ambas.
Marinete mencionou sua luta contra o câncer e as quatro cirurgias que enfrentou desde a morte da filha, mostrando sua determinação em comparecer ao julgamento para honrar a memória de Marielle. “Não tem como definir o que passei nesses anos. Estou aqui para pedir justiça para minha filha e para Anderson”, desabafou.
Monica Benicio, viúva de Marielle, foi a terceira a depor e relembrou com pesar os planos futuros que as duas tinham, incluindo o casamento, interrompidos de forma abrupta. “Quando tiraram Marielle, tiraram a promessa de um futuro que estávamos construindo juntas”, declarou, em meio a lágrimas.
Ela ressaltou que Marielle estava em ascensão profissional e se consolidando como uma figura importante na luta pelos direitos das minorias, especialmente de mulheres negras e da comunidade LGBTQIA+.
Ao descrever o relacionamento que tinham, Monica disse que Marielle era uma mulher inspiradora, generosa e com um forte compromisso com as causas sociais. “Era uma das pessoas mais companheiras que conheci, no sentido mais generoso que isso pode ter.” Ela ainda enfatizou o papel que Marielle desempenhava dentro do PSOL e como sua liderança já era visível dentro e fora do partido, o que a tornava um símbolo de resistência e de esperança para muitas pessoas.
Ágatha Reis, viúva de Anderson Gomes, motorista de Marielle, também compartilhou seu testemunho e falou sobre o impacto da perda do marido, não apenas para ela, mas também para o filho do casal, Arthur, que tinha apenas um ano e oito meses na época do crime.
“A primeira palavra de Arthur foi ‘papai’”, contou Ágatha, que, desde então, enfrenta os desafios de criar o filho sozinha. O crime não apenas tirou a vida de Anderson como também interrompeu planos importantes, como a realização de exames genéticos necessários para o diagnóstico médico de Arthur.
“Arthur nunca poderá conhecer o pai. Ele perdeu todos os Dias dos Pais, todas as festas, todos os momentos em que um filho deveria ter seu pai ao lado,” lamentou Ágatha, destacando a dificuldade de criar o filho sozinha e o impacto emocional no desenvolvimento da criança.
Relembre o crime
O assassinato de Marielle Franco, ocorreu no bairro do Estácio, no Rio de Janeiro, na noite de 14 de março de 2018. A vereadora voltava de um evento em defesa dos direitos das mulheres negras quando seu carro foi alvejado por tiros. A única sobrevivente foi Fernanda Chaves, que ficou ferida por estilhaços.
O Ministério Público do Rio de Janeiro e a Polícia Federal trabalharam em colaboração para coletar provas, e em 2019 prenderam os acusados, que posteriormente confessaram o crime em uma delação premiada. As investigações também revelaram que a execução teria motivações políticas e econômicas, com possíveis mandantes ainda sob investigação. Entre os nomes apontados estão os irmãos Domingos e Chiquinho Brazão, ex-deputado estadual e conselheiro do Tribunal de Contas do Estado, respectivamente.